CONSERVAÇÃO E RESTAURAÇÃO DE BENS CULTURAIS

19 junho 2013

A Restauração em foco: entre mitos e realidades Karen Velleda Caldas

Os cânones da conservação-restauração tiveram suas estruturas abaladas após a publicação Teoría Contemporánea de la Restauración, de Salvador Muñoz Viñas. Professor titular e atual diretor do Departamento de Conservação e Restauração da Universidade Politécnica de Valência, na Espanha, o autor empreendeu uma ousada discussão sobre os paradigmas - quase dogmas - dessa área da preservação do patrimônio cultural. Graduado em belas artes, PhD pela Universidade de Harvard e prêmio de pesquisa Luis de Santángel, foi o primeiro espanhol a receber o título de Fellow do International Institute for Conservation of Historic and Artistic Works (IIC) em reconhecimento por suas obras sobre teoria da restauração. Essa designação é a categoria máxima que a organização, formada por milhares de membros em mais de cinquenta países, outorga aos profissionais especialmente reconhecidos no campo da conservação.
O texto, publicado por Muñoz em 2004, alcançou repercussão internacional e faz parte das bibliografias recomendadas – e necessárias - para os pesquisadores ou interessados no tema da preservação patrimonial. Nesta obra realiza uma análise profunda das teorias da restauração – as quais denomina “clássicas” - de modo a atualizar à contemporaneidade o que os teóricos preconizaram e consolidaram como regras e verdades ao longo dos dois últimos séculos.
Muñoz organiza o texto em três partes, além da introdução e de uma densa conclusão. Na primeira, identifica os fundamentos da restauração, seus conceitos, contextualizando-a do ponto de vista cultural. Já neste momento começa a desvendar as inconsistências e os limites mal definidos de uma teoria e prática conflituosas, desenhando o universo de o quepara que epara quem se preserva. Em uma palavra, o desiderato da ação restauradora.
Seu estudo indica que duas correntes dominantes orientaram grande parte das intervenções nos bens culturais nos últimos cem anos: uma inclinada para valores estéticos e outra para preceitos científicos. Sustenta que as teorias clássicas apresentam-se limitadas para o escopo atual da cultura, considerando que nem todos os objetos sujeitos ao restauro são obras de arte, bem como os motivos que levam a restauração desses bens podem relacionar-se a outros valores além do histórico e do artístico – sejam estes ideológicos, afetivos, religiosos, etc. - não sendo, portanto, inerentes ao próprio objeto nem, tampouco, cientificamente quantificáveis
Na segunda parte, Muñoz faz uma crítica aos conceitos clássicos sustentada em diversos autores da atualidade: princípios como autenticidade, objetividade, reversibilidade e ciência aplicada são colocados em xeque frente a uma realidade contemporânea que exige novos referenciais teóricos capazes de dialogar com a prática da restauração de modo efetivo.
O autor muda o olhar, antes direcionado ao objeto e sua materialidade, para a função e o significado que esse objeto representa em relação a seus grupos de pertencimento. Não obstante, questiona vários paradigmas da teoria da restauração, especialmente aqueles oriundos da teoria do italiano Cesare Brandi, publicada em meados do século XX. Critérios legitimados como mínima intervenção, distinguibilidade e reversibilidade, referências ainda fundamentais na justificativa das ações interventivas, são discutidos à exaustão. Partindo dessa análise minuciosa, o texto faz uma crítica explícita aos conceitos clássicos, apresentando a teoria contemporânea como alternativa para suprir suas limitações. Traz à discussão a necessidade de adoção de uma ética mais democrática e menos aristocrática a fim de que a restauração atenda a mais sensibilidades e contemple o maior número possível de formas de entender o objeto e atender equilibradamente a todas as suas funções e usuários.
No que se refere à ciência a serviço da conservação-restauração, o teórico sustenta que esta informa, mas não justifica as decisões que são tomadas na seleção de um determinado estado dos bens patrimoniais, logo, o restauro científico seria insuficiente para atender ao contexto contemporâneo da restauração. A objetividade - fundamento da abordagem científica - prevalente a partir do final do século XX, seria substituída, na teoria contemporânea, por uma forma de subjetivismo. Assim, Muñoz Vinãs adverte que as razões pelas quais se restaura e a seleção das coisas que se restauram são decisões culturais, antes de iniciativas de caráter estritamente técnico. Dentro da discussão da ciência a serviço da restauração, o autor apresenta também o conflito conceitual do critério da reversibilidade, substituído na teoria contemporânea pelo termo retratabilidade. O autor legitima a expressão, que, embora ainda se apresente restrita, traz consigo um considerável avanço para a matéria, pois ao menos demonstra os problemas teóricos que a ideia de reversibilidade carrega - e a necessidade de adaptação que exige por parte de quem os interpreta.
A terceira e última parte, que abrange a ética na restauração, aponta as modificações promovidas pela filosofia social no âmbito da cultura e na maneira como a sociedade passa a se comportar na medida em que reconhece sua diversidade. O autor admite que os conceitos subjetivos emergentes do atual endendimento de cultura produzem efeitos também na restauração, área que exige contínuas e bem sustentadas tomadas de decisão.
Nesse ponto talvez resida o principal avanço da teoria contemporânea da restauração, pois esta coloca o diálogo, a interdisciplinaridade e a sustentabilidade como caminhos fundamentais a fim de que as escolhas atendam mais satisfatoriamente a um maior número de sensibilidades. O autor expressa claramente essa ideia na na página 104 ao afirmar que “cualquiera que sea el momento de la historia del objeto que se escoja como estado de verdad, [...] al que el restaurador pretende devolver el objeto restaurado, se está haciendo una elección [...] que tiene inevitablemente um carácter [...] subjetivo”. O debate interdisciplinar com vistas à sustentabilidade, entendida por Muñoz num sentindo que vai além da possibilidade econômica de manutenção das intervenções, diminuiria o risco de excessos cometidos por profissionais que ele nomeia como peritos da verdade.
Muñoz afirma portanto, que o caráter subjetivo da conservação-restauração deve prevalecer sobre os aspectos objetivos de busca de verdades pois avalia que o que caracteriza a restauração não são suas técnicas ou instrumentos, mas sim a intenção com que se fazem as ações. Em suma, ela não depende do que se faz e sim para que se faz. Não obstante, o estudo destaca como essencial o caráter simbólico da restauração, cujos objetivos e limites estão vinculados à manutenção e recuperação dessa capacidade - sendo esta a diferença de outras atividades similares como reparação, repinturas ou remendos. Seguindo seu raciocínio, a teoria contemporânea da restauração oferece ferramentas conceituais mais flexíveis e adaptáveis para o sentido comum de todos os envolvidos com o bem cultural. Ainda nessa terceira parte apresenta, criticamente, os limites da teoria contemporânea da restauração, fazendo uma provocação a novas discussões, como o argumento de genialidade e os riscos de banalização.
Além das discussões teóricas o texto reconhece que a teoria contemporânea já existe. Contudo, ela se apresenta de forma difusa, muitas vezes expressada de forma paralela ou implícita, tratando-se de um conjunto ainda fragmentado, embora muitas das ideias que a sustentam tenham sido concebidas por Riegl no início do século XX. Partindo da percepção de um fio condutor, o autor sistematizou esse pensamento, conferindo-lhe um sentido orgânico, o que não significa assumir que representa uma recomplilação do trabalho de outros autores. Longe disso. A reflexão de Muñoz e o modo como organiza o pensamento resultou em inúmeras contribuições pessoais, o que confere a seu texto uma parcialidade indiscutível.
Em que pese ser um texto teórico, a linguagem do autor ao longo de suas 205 páginas é clara e simples: Salvador Muñoz Viñas tem um estilo irônico e sarcástico - quase literário, porém, sem excessos que comprometam a profundidade de sua reflexão. Trata-se de um conteúdo denso de natureza acadêmica. Contudo, a forma como o texto é abordado pelo autor torna-o atrativo para diferentes públicos. É leve e estimulante à discussão – objetivo intrínseco da obra – sendo igualmente relevante para profissionais e pesquisadores envolvidos na rede complexa de princípios e conceitos que subjazem à “arte” da restauração.
As discussões sobre preservação do patrimônio ganham outros contornos e significados a partir da leitura de Salvador Muñoz Viñas. Além da qualidade textual, o autor presenteia os leitores com uma bibliografia comentada que acende o interesse por aprofundar ainda mais o estudo sobre a restauração. Em verdade, o texto é um banquete provocativo, e como tal, merece ser degustado com muita atenção. Trata-se de uma obra rica e reconhecida como uma das mais inovadoras sobre o tema, considerada leitura obrigatória para os envolvidos com a área da preservação do patrimônio. Os inquietos e com fome de novos saberes, certamente farão bom proveito.

sobre a autora
Karen Velleda Caldas é mestranda do Programa de Pós Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas na linha de pesquisa Patrimônio e Cidade, graduada em Conservação e Restauro pela mesma Universidade e em Comunicação Social pela UCPel. Pesquisa temas relacionados às teorias da restauração e integra projeto que pesquisa a memória e o patrimônio da arquitetura pelotense.

Fonte: VITRUVIUS, Em http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/12.138/4765 acessado dia 19/6/2013 as 14:00h, 

14 junho 2013

Inovação em Conservação "Você pode pensar em uma maneira melhor para revolucionar a conservação?"

Criatividade consiste em grande parte de rearranjar o que sabemos, a fim de descobrir o que não sabemos ... Assim, para pensar criativamente, devemos ser capazes de olhar de novo para o que normalmente tomam por concedido.
Robert Fisher



  Quinze anos atrás, quando eu estava estudando conservação na universidade uma das coisas que eu mais gostei foi descobrir novos dispositivos e aparelhos e descobrir como eles podem ser úteis no meu trabalho. Eu costumava procurar ansiosamente catálogos de equipamentos em vários campos, tentando encontrar novos usos para essas "ferramentas de aparência estranha". Olhando para trás, percebo agora que eu, basicamente, uso as mesmas ferramentas antigas, sinto um pouco de decepção pela falta de inovação no nosso campo.
   Eu não estou dizendo que nada mudou na conservação. Estou bem ciente do enorme avanço que a ciência trouxe para o nosso campo, como melhores técnicas analíticas e de imagem digital. No entanto, estes têm sido, como sempre, emprestado de outros campos, como a física e a indústria  química. Quando pensamos em inovação na conservação, o mais recente equipamento científico vem a mente, mas na verdade para o nosso trabalho prático e imediato, as ferramentas que precisamos são muito mais simples.
  No nosso dia-a-dia de treinos nos encontramos, utilizando as metodologias mais conhecidas, porque sentimos que elas são os mais seguras. Podemos estar trabalhando contra o relógio, preso em uma rotina diária, apenas movendo sem pensar muito. Eu acho que é mais uma questão cultural nossa, sendo usuários em vez de fabricantes e, como em todos os assuntos culturais, isto também pode ser alterado. Veja o exemplo de Jeff Peachey, encadernador e conservador privado, que é um dos poucos profissionais que eu conheço que gosta de inventar. Se o conservador praticando vai mudar a sua mentalidade para encontrar uma maneira melhor de fazer o mesmo trabalho, então temos que definir o caminho para a inovação. Inovação não depende a última moda tecnológica ou no acesso a equipamentos científicos caros. A inovação não precisa ser high-tech. Ela só tem que servir a um propósito de uma maneira melhor do que antes.
  Um exemplo de referência para o nosso campo pode ser que do Movimento Makers (fabricantes). Este movimento está surgindo a partir da cultura do-it-yourself (faça você mesmo), mas longe de ser simples amadores, estes fabricantes transformar suas idéias em realidade, às vezes com um propósito comercial, mas na maioria das vezes para a diversão de trazer ao mundo algo físico que imaginou. Eles podem literalmente criar qualquer objeto, desde o mais ridículo ao mais interessante. A clara vantagem dessa cultura é que eles são movidos pela criatividade e objetivos, não apenas por aquilo que eles aprenderam como nós, conservadores, muitas vezes são.
  Este movimento foi recentemente chamado de "nova revolução industrial", porque tem poderes do indivíduo com a capacidade de produzir o que até bem pouco tempo era apenas o poder de fábricas. Tomemos, por exemplo, o caso das impressoras 3D: como impressoras 2D revolucionou a editoração eletrônica, assim será impressoras 3D mudar para sempre a forma como criamos objetos. Você já imaginou o seu potencial para a conservação? Ou olhar para tecnologias muito menos complexas, como o Dino-Lite (http://www.dinolite.com.br/ ), o famoso microscópio portátil digital.
  Apesar de suas limitações, é muito útil em nosso campo, mas se você pensar sobre isso, você vai perceber que tecnologicamente é muito básico, não muito longe de um simples brinquedo: uma webcam, uma lente de plástico e alguns LEDs. Todos estes são baratos peças off-the-shelf que podem ser facilmente montados para se tornar uma ferramenta de grande utilidade.
  Claro, eu não espero que deve vir tudo com grandes invenções, mas apenas prestar um pouco mais atenção às coisas que fazemos diariamente e tentar melhorá-las. Nem todas as invenções são necessariamente tecnológica: encontrar uma maneira de reduzir o desperdício, para tornar a conservação mais respeitadora do ambiente, para desenvolver melhores bisturis ou melhor morteiros já seria de grande ajuda. Por último, mas não menos importante, quando você descobre alguma coisa, certifique-se de compartilhá-la com o mundo, dar esse passo que contribui para o avanço do nosso campo.
  E imaginem, podemos adotar e implementar esta forma inovadora de pensar em nossas universidades, começando com a primeira fase de nossas carreiras. Você pode pensar em uma maneira melhor para revolucionar a conservação?

Rui Bordalo,
Redator-chefe
* Tradução do editorial da revista e-conservation (texto original: http://www.econservationline.
com/content/view/1090 ).



Carta de Pelotas, março de 2013*.

Sobre a conservação e restauro de bens culturais no Brasil


  O Conservador-restaurador é um profissional que trabalha para apreservação de bens culturais que se revestem de características simbólicas, o que lhes atribui valor cultural, além do valor financeiro que é presente em muitos desses objetos. A própria especificidade da atuação profissional do Conservador restaurador justifica a sua importância e razão social de ser: ao operar sobre objetos que têm essas diversas dimensões de significado e valor social, objetivando a manutenção da sua existência, o Conservador-restaurador contribui para a preservação da memória social.
  Por esses motivos o Conservador-restaurador já tem o seu reconhecimento estabelecido em diversos países. No Brasil, apesar de algumas instituições e profissionais contribuírem para a divulgação da imagem do Conservador-restaurador, ainda se constata muito desconhecimento por parte da sociedade, de maneira geral, de modo que nem sempre os conservadores-restauradores são considerados ou lembrados como os profissionais habilitados para exercerem aquilo que deveriam fazer - a gestão da memória por meio da conservação e restauração dos bens culturais.
  Nos últimos anos o Brasil presenciou algumas mudanças aceleradas no campo da conservação e restauro dos bens culturais. Dentre elas, destaca se o avançado estágio do processo de regulamentação da profissão de Conservador-restaurador e o surgimento dos cursos de graduação nesta área, em instituições públicas e privadas. Nesse novo contexto, antigas demandas da área são fortalecidas, ao mesmo tempo em que outras passam também a ocupar o espaço de reivindicação coletiva dos agentes que lutam pela consolidação da área da conservação e restauro no Brasil.
  A partir desse contexto, os participantes presentes na 1º Semana de Conservação e Restauro realizada pela Universidade Federal de Pelotas em março de 2013, entenderam ser fundamental que o processo de regulamentação da profissão do Conservador-restaurador seja finalizado o mais rápido possível, considerando os riscos pelos quais passa o patrimônio cultural, a exemplo de alguns tristes acontecimentos que foram noticiados em escala mundial e que já são históricos, tais como a suposta restauração de uma pintura sacra ocorrida na Espanha, realizada pela senhora Cecilia Giménez, o que implicou na provável destruição da obra original.
  Dessa forma, durante este evento a temática do necessário fortalecimento da área da conservação e restauro foi debatida com a participação de estudantes de cursos de graduação em conservação e restauro de instituições brasileiras, professores, profissionais atuantes e demais apoiadores da área, de modo a identificar as questões importantes para a área e elencá-las no presente documento. Os elementos que compõem esta Carta de Pelotas foram discutidos e entendidos como de fundamental importância para a qualificação e consolidação da área da conservação e do restauro de bens culturais no Brasil e estão enumerados a seguir:

- O Conservador-restaurador é um profissional que poderá priorizar a conservação ou o restauro em sua atuação profissional. No entanto, as decisões devem ser tomadas respeitando os princípios éticos da profissão e considerando o horizonte de expectativas dos grupos que detêm a posse de um determinado bem cultural. Será no trabalho em equipe, e considerando as características em que se encontra o bem cultural, que deverá se estabelecer uma metodologia de ação, sempre pensando de forma integrada a conservação e o restauro como atividades que compõem um mesmo campo epistemológico e profissional. Assim sendo, é fundamental que se perceba a abrangência da atuação do conservador-restaurador e que se compreenda que o trabalho interdisciplinar não descaracteriza as especificidades da área.

- O trabalho com o patrimônio imaterial requer conhecimentos a respeito das especificidades dessa tipologia patrimonial, na medida em que o Conservador-restaurador precisa operar com objetos que compõem esse
patrimônio e deve respeitar a dimensão memorial destes objetos. Assim, os conceitos que normalmente são utilizados para o patrimônio tradicionalmente dito material, devem ser utilizados com um necessário cuidado com as especificidades dos objetos que compõem parte do que se compreende como patrimônio cultural imaterial.

- Considerando os aspectos éticos da profissão, na medida do possível o Conservador-restaurador deve publicizar os resultados do seu trabalho, visando a transparência de sua atividade profissional, sem que isso prejudique a segurança e a integridade do bem cultural e do seu proprietário, ou mesmo da instituição a qual o mesmo pertence. Congressos de área, promovidos por instituições de representação de classe, instituições culturais, universidades ou outros, são meios adequados para a socialização dos resultados e dos conhecimentos obtidos com trabalhos de conservação e restauro, e reforçam a importância social do Conservador-restaurador.

Os conservadores-restauradores do Brasil e os estudantes da área devem se unir e permanecerem atentos frente ao desconhecimento ou desvalorização da profissão, objetivando também a luta pelo efetivo reconhecimento da profissão. Nesse sentido, é importante que a categoria se manifeste frente a algumas situações listadas a seguir:

- Estágios curriculares realizados por estudantes de cursos de Conservação e Restauro devem respeitar a legislação vigente, como forma de reforçar o processo de consolidação da área no país, do mesmo modo que a condução dos estágios não pode retirar espaço de atuação dos profissionais estabelecidos no mercado. Assim sendo, é fundamental que as instituições culturais e de ensino conduzam esses estágios com responsabilidade. Os estágios curriculares são integrantes dos projetos pedagógicos dos cursos de graduação, sendo experiências formativas e de aprendizado. Dessa forma, os estudantes devem obter, através de seu estágio, uma experiência de aprendizado e não a responsabilidade de substituir profissionalmente um conservador-restaurador devidamente habilitado.

- É urgente e necessário que se estabeleçam diretrizes curriculares nacionais para cursos de graduação em Conservação e Restauro de Bens Culturais. Na medida em que diversos cursos têm surgido no país, a falta de diretrizes específicas para essa área de formação não contribui para a consolidação desta área.

-Os conservadores-restauradores são os profissionais habilitados para exercerem ações de conservação e restauro de bens culturais. Na relação com outras áreas do conhecimento é fundamental que sejam resguardadas e respeitadas essas atribuições da profissão. Nessa perspectiva recomenda-se que estudantes e profissionais se mantenham atentos a editais de concursos e processos de seleção, de modo que os sujeitos devidamente habilitados para trabalhar com a conservação e restauro de bens culturais tenham acesso a esses processos seletivos e que se resguarde a especificidade dessa habilitação para postos de trabalho na área.

O presente documento coloca-se como uma ferramenta para respaldar ações políticas e encaminhamentos dos profissionais da área, tendo sido aprovado pelos presentes, somando-se aos demais documentos equivalentes que têm como objetivo comum o crescimento e a consolidação da área da conservação e restauro de bens culturais no Brasil.

Pelotas, março de 2013.

*Carta redigida durante a 1° Semana de Conservação e Restauro da UFPel

07 junho 2013

PEQUENO RESUMO DA HISTÓRIA DA CONSERVAÇÃO/ RESTAURAÇÃO


Os antigos gregos já priorizavam a conservação de suas obras, praticando a Conservação Preventiva, pois faziam a seleção de materiais e técnicas para a execução de suas esculturas e pinturas. Os templos tinham o papel dos museus, onde as esculturas e outras peças eram inventariadas e as esculturas arcaicas eram enterradas. A Restauração era praticada para recompor partes de peças que eram danificadas pelas guerras e roubos.
Na Roma antiga, a prática do colecionismo indicava poder social e político. As coleções eram privadas, e as obras eram modificadas ao serem obtidas. Faziam-se cópias e reproduções e praticavam-se intervenções drásticas, como a transposição de pinturas murais para painéis de madeira. Os romanos, pela dominação territorial extensa, absorveram várias culturas e religiões, modificando-as. Buscavam a imortalidade da matéria. Devido a isso, a restauração era vista como magia, pois o restaurador era aquela pessoa especial que dava vida à obra através do realismo obtido pelas intervenções. O restaurador tinha cargo público: curator statuarum.
Na Idade Média, a Conservação/Restauração estava ligada à recuperação de materiais. A pobreza e a falta de matéria-prima levavam à destruição de monumentos e à refundição de esculturas e peças de metal; buscavam-se recuperar pedras e peças de monumentos abandonados; os templos, termas e teatros serviam como canteiros de obtenção de mármores; fragmentos e esculturas inteiras de mármores eram queimados para a fabricação da cal utilizada na argamassa. As obras sofriam intervenções “utilitárias” ou de gosto, e o restaurador era considerado o artista, pois as “corrigia”.
Inicia-se então um grande desenvolvimento de técnicas e do fazer artesanal, com o qual aparecem os primeiros tratados técnicos, fruto das experiências dos monastérios, como o Libro Del Arte, de Cenino Cennini (séc. XIV), sobre técnicas pictóricas.
Com o Renascimento, a Restauração fez prevalecer a instância estética sobre a histórica, através de inserções e renovações que mudam o significado iconográfico das obras: há uma busca de avanços tecnológicos e emprego de materiais distintos dos do original mas com o intuito de depois igualá-los através de pátinas; há presença de um colecionismo conservador e recuperador, motivado pelo gosto classicista; surgem falsificações através de intervenções que se aproximam do original, e são motivadas pelo gosto dos antiquários; ocorrem modificações no tamanho e formato das obras, devido à mudança de gosto e também às trocas de coleções, assim como, nas imagens, por meio de transformações mais realistas e também pelas mudanças de fundos; as intervenções relacionadas à religião alteram as obras por razões de culto, seja para valorizar o santo ou para substituí-lo por outro cuja devoção fosse mais atual; imagens consideradas indecentes são destruídas; imagens religiosas com grandes lacunas são queimadas em nome do respeito; proíbem-se as imagens de nus, nas quais são colocados vestidos e “panos de pureza”.
No Barroco, a Conservação/Restauração adquire um caráter mais específico devido à definição, pelo mercado, das diferenças entre artista e restaurador; buscamse novos materiais, técnicas e teorias sobre as possibilidades e os limites da restauração da matéria e sobre o valor histórico e cultural das obras; ocorrem avanços nas técnicas de restauração dos suportes e de limpezas; as transposições e marouflages passam a ser amplamente utilizadas; valorizaram-se a pátina do tempo; há uma difusão de produtos devido aos receituários; a reintegração cromática é realizada, de forma ilusionista através de repintura com os mesmos materiais do original; esculturas são complementadas e patinadas; iniciam-se uma busca por materiais reversíveis, e continuam as mudanças formais e de tamanho, de acordo com o gosto da época.
No final do século XVIII e no século XIX, com o Classicismo, a Conservação/Restauração vincula-se ao sentimento de patrimônio cultural coletivo: criam-se museus e academias; controlam-se as intervenções nas obras; as coleções são abertas ao público, e os museus adotam políticas pedagógicas” em relação aos visitantes; surge a definição de museu: “local onde se guardam várias curiosidades pertencentes às ciências, letras e artes liberais”.
Na pintura, buscam-se materiais mais estáveis, experimentando-se diversos aglutinantes, com preferência para as têmperas e encáusticas, pelo seu não-amarelecimento e não-escurecimento; há uma maior compreensão sobre as alterações das cores devido ao tempo e sobre a instabilidade de determinados pigmentos como o azul da Prússia; surgem novos pigmentos brancos, como o branco de zinco que substitui o branco de chumbo; a cera é usada, na frente e no verso da pintura, como camada de proteção contra umidade; iniciam-se os estudos sobre a oxidação dos materiais; inspetores do Estado controlam os trabalhos dos restauradores e classificam as obras de acordo com as suas deteriorações; produtos corrosivos deixam de ser utilizados, dando-se prioridades às cores; realizam-se reentelamentos, limitam-se as reintegrações cromáticas somente às lacunas, proíbem-se a eliminação de partes do original e de inscrições; transposições passam a ser realizadas somente nos casos de obras muito danificadas; o restaurador não pode levar cópias ou qualquer trabalho para seu ateliê e a circulação no local da restauração passa a ser restrita; algumas pesquisas científicas começam a ser realizadas em ateliês; novos critérios são estabelecidos, tais como, respeito máximo ao original, valorização do suporte, diminuição das transposições, reintegração ilusionista.
A Revolução Industrial traz grandes avanços tecnológicos, com a produção de materiais industrializados. Com o surgimento dos movimentos “neo”- neoclássico, neogótico -, resgatam-se movimentos antigos.
Alguns nomes consagram-se nessa época, como referência a estilos de restauração. Eugène Violet-Le-Duc, arquiteto, defende a restauração estilística, fazendo reviver o estilo neogótico; seu projeto baseia-se na busca pelo original e a perfeição formal dos edifícios deixando de lado a sua história. John Ruskin valoriza a arquitetura e seus critérios de conservação/restauração; para ele, o verdadeiro valor do edifício está nos materiais e na sua historicidade; partidário da conservação preventiva e da conservação in situ, enfatiza o papel do ambiente e da luz sobre as esculturas e talhas.
Já a Escola Italiana, partidária da restauração científica, defende a consolidação do que ainda existe, condenando a eliminação dos anexos históricos e preconizando a realização apenas de intervenções mínimas e reconhecíveis; os laboratórios de ciências instalam-se dentro dos ateliês de restauração.
No século XX os critérios e teorias sobre conservação e restauração de obras de arte são definidos. Surgem questões jurídicas na defesa do patrimônio e a regulamentação da profissão de restaurador. Com a arte contemporânea, os procedimentos e teorias da conservação/restauração são revisados.
Em 1930, iniciam-se o estudo sistemático da estrutura e a valorização da documentação; com a Segunda Guerra Mundial, destrói-se parte importante do patrimônio europeu; a Restauração sai do empirismo e busca bases científicas; são feitos estudos sobre comportamento mecânico da pintura sobre tela; o respeito ao original ganha máxima importância; a intervenção é feita de acordo com a necessidade da obra, priorizando-se a conservação; desenvolvem-se estudos sobre a influência do clima na conservação das obras de arte; aparecem conceitos como Reversibilidade, Estabilidade e Legibilidade; a Restauração passa a cuidar não só das obras de arte, mas também dos bens culturais; são criados centros e institutos internacionais como: o IRPA - Institut Royal do Patrinoine Artistique (Bruxellas,1937), o ICR - Istituto Central del Restauro (Roma, 1940), o ICOM - International Council of Museum (Paris,1946), IIC - International Institut for Conservation (Londres, 1950) e o ICCROM - Centro Internacional para o Estudo da Conservação e da Restauração (1956).
Em 1963 Cesare Brandi publica La teoria de la restauración e, em 1964, a Carta de Veneza estabelece novas regras para a restauração de monumentos.
Surgem questões jurídicas na defesa do patrimônio e a regulamentação da profissão de restaurador.
Hoje, com a arte contemporânea, novas teorias estão sendo formuladas e os estudos científicos crescem a cada dia por meio de novas tecnologias voltadas para física, química e biologia a serviço da conservação e preservação da obra de arte.
É importante ressaltar que a conservação preventiva da obra de arte é fundamental para que a mesma não chegue a sofrer intervenções de restauro.
As obras de arte também envelhecem, e desse modo, devemos sempre ter cuidados para que ela não sofra com alterações ambientais, com vandalismos e principalmente com o esquecimento.
MIGUEL, Ana Maria Macarrón. Historia de la conservación y la restauración: desde la antigüedad hasta finales del siglo XIX.”. Madrid: Tecnos, 1995.



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